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Memória, Verdade e Justiça: a função do testemunho

Atualizado: 29 de abr. de 2022

Tainã Rocha


Não há paz interior sem a verdade (Reggiardo Tolosa)


A partir de 1976, as Forças Armadas tomaram o poder e instalaram o Terrorismo de Estado como mecanismo de repressão social. Os recursos do Estado foram usados ​​para censurar, perseguir, assassinar, desaparecer pessoas e apropriar-se de crianças. O Estado de Direito perdeu validade no período que durou até 1983. Como diz Lo Giúdice e Olivares (2006), criado pelo nazismo e replicado na última ditadura militar argentina, o desaparecimento forçado de pessoas e a institucionalização dos campos de concentração e extermínio tornaram-se um modelo de poder próprio do século XX. Porém, a existência de um plano sistemático de apropriação de filhos de pessoas vítimas de desaparecimento forçado, ou de filhos nascidos no cativeiro de suas mães, foi um dos traços distintivos da última ditadura argentina (Kletnicki, 2004). Centenas de crianças foram roubadas e apropriadas por famílias, em sua maioria, cúmplices deste delito.

Com o restabelecimento da democracia, a expectativa de que a justiça seria feita pelos crimes contra a humanidade não foi inicialmente atendida. Com a abertura de diversos processos judiciais para apurar as responsabilidades e penas pelos crimes praticados no período da ditadura e a constante interrupção dos mesmos devido a leis inconstitucionais, se consuma, conforme aponta Jinkis, J. (1987), “o prejuízo de uma dignidade que poderia ter sido”. Essas leis passaram a ser conhecidas como Leis do Perdão ou Leis da Impunidade, foram elas: Lei do Ponto Final (Lei 23.492 de 1986), que fixava prazo para as denúncias de novos casos, Lei da Devida Obediência (Lei 23.521 de 1987) que legalmente exonerou os escalões inferiores das Forças Armadas e da polícia e, por fim, o Decreto Presidencial de Perdão de 1990 que permitiu a libertação dos escalões superiores dos militares. Somente em 2003 essas leis foram revogadas, o que permitiu a reabertura de diversos processos e a consequente condenação de repressores.

Fariña e Gutiérrez (1996) argumentam que “a via da impunidade organizada pelo Estado nas três etapas da exoneração - ponto final, obediência devida, perdão - produziu uma lesão simbólica na sociedade”. Para Noailles (2014) existe uma relação complexa entre trauma e impunidade, uma vez que, enquanto não se estabelece a responsabilidade pelo ocorrido, termina se produzindo uma reatualização do trauma que não leva à sua elaboração. Assim como encontramos efeitos subjetivos negativos produzidos pela manutenção da impunidade, também encontramos efeitos subjetivos positivos com a reabertura dos julgamentos. Ocupar o lugar de testemunha permite ao sujeito construir uma experiência autoral a partir do vivido, facilitando a elaboração da situação traumática à medida que o sujeito se apropria de sua própria história e pode fazer algo com ela. Prestar depoimento requer, portanto, uma mudança de postura: que o sujeito possa se deslocar do lugar da vítima silenciada e ocupar o lugar da testemunha que narra suas experiências.

O testemunho requer de um laço em que o outro esteja implicado (Gutiérrez, 2014). Para fazer laço é preciso que haja alguém ouvindo, um Outro que dê suporte ao oferecer hospitalidade. Testemunhar, como afirma Noailles (2014), implica colocar em palavras acontecimentos traumáticos para o sujeito, em um contexto muitas vezes hostil e retraumatizante. O ambiente jurídico nem sempre abre espaço para a testemunha falar sobre suas experiências. Muitas vezes as perguntas são muito objetivas e o juiz exige uma resposta específica, fechando a possibilidade de uma narrativa que dê lugar à subjetividade. Entretanto, a instauração de processos que julgam crimes de lesa humanidade visando o fim da impunidade possibilita que as vítimas tomem a palavra, permite que sejam ouvidas, que iniciem o luto e permite a reparação simbólica do dano. Dessa forma, “o testemunho permite construir experiências ao invés de transmitir traumas”. Os testemunhos, em sua maioria, dão um sentido de reparação às vítimas. O sujeito também é produzido a partir do ato de testemunhar.

Dia 24 de março é o Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça. A data se refere ao golpe de 1976 e busca gerar memória e consciência coletiva para que golpes de Estado e violações dos direitos humanos não se repitam "nunca mais" e que seus autores sejam julgados e punidos. 30.000 pessoas foram desaparecidas durante a ditadura. Podemos manter viva suas histórias a partir do testemunho de sobreviventes, familiares e dos 130 netos que foram encontrados pelas Avós da Plaza de Mayo e que puderam recuperar a sua verdadeira identidade. Temos apenas o testemunho do sobrevivente, não do mártir. Tal testemunho tem origem na impossibilidade da verdadeira testemunha depor (Gutiérrez, 2014). Quem testemunha fala no lugar de quem não pode. Tomar a palavra para testemunhar supõe um ato que evidencia a divisão entre apropriação e separação, entre o que é dito e o que é impossível de dizer (Corinaldesi e Gutiérrez 2014). A testemunha é então desafiada a tomar a palavra do Outro e dar seu depoimento, em um ato de apropriação da palavra, que acaba se revelando um ato de coautoria entre o sobrevivente e o mártir. Em última análise, a testemunha é aquela que, com sua narrativa, nos permite manter a memória pela verdade e justiça.



Bibliografia

Corinaldesi, A. y Gutiérrez, C. (2014) La autoría del testimonio. En “Destinos del testimonio: victima, autor, silencio”. Letra Viva, Buenos Aires

Gutiérrez, C. (2014) La mirada y la voz del testigo. En “Destinos del testimonio: victima, autor, silencio”. Letra Viva, Buenos Aires.

Gutiérrez, C. (2014) La hospitalidad del testimonio. En “Destinos del testimonio: victima, autor, silencio”. Letra Viva, Buenos Aires.

Jinkis, J. (1987). Vergüenza y responsabilidad. En Conjetural, número 13. Editorial Sitio. Buenos Aires.

Kletnicki, A. (2004). Niños desaparecidos: lógica genocida y apropiación ilegal. En Daniel Feierstein y Guillermo Levy (comp): Hasta que la muerte nos separe. Poder y Prácticas Sociales Genocidas en América Latina, Ediciones Al Margen, Buenos Aires, 2004.

Lo Giúdice, A. y Olivares, C. (2006). Identidad y responsabilidad. En Violaciones a los derechos humanos frente a los derechos a la verdad e identidad, Abuelas de Plaza de Mayo, Buenos Aires, 2006.

Noailles, G (2014) El valor del testigo. En “Destinos del testimonio: victima, autor, silencio”. Letra Viva, Buenos Aires.

Michel Fariña, J. J. y Gutiérrez, C. (1996). Veinte años son nada. En Causas y azares. Número 3. Buenos Aires, 1996.






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